Direitos Humanos e Cidadania

Historicamente, a noção de cidadania é anterior à noção de direitos humanos, sendo estes de difícil conceituação e de reconhecimento recente.

I – Introdução

Desde a Antiguidade, a cidadania, basicamente, consistia e consiste em atribuir um conjunto de direitos às pessoas, garantias em face do Poder (monárquico, imperial, republicano) contra abusos e normas disciplinadoras de participação na política.

Os denominados direitos humanos começaram a ser esboçados na Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776, e na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, na Revolução Francesa, em 1789. Logo de início, tais declarações afetaram a noção de cidadania, no sentido de estendê-la a todas as pessoas, pois, até então, através dos séculos, somente um pequeno grupo social detinha os direitos de cidadão. Os demais, a grande maioria da população, eram os escravos, os servos, os estrangeiros.

A ideia de que todo ser humano nasce livre e é titular de direitos, sem distinção de qualquer natureza, é o cerne do que se denomina por direitos humanos.

A rápida evolução doutrinária e normativa classificou os direitos humanos por gerações ou dimensões, conforme o contexto histórico em que surgiram. De modo mais ou menos consensual, classificam em cinco gerações ou dimensões: 1ª) direitos de liberdade; 2ª) direitos de igualdade; 3ª) direitos sociais; 4ª) Bioética; 5ª) direito à paz.

O objetivo do presente trabalho, em seus estreitos limites, é demonstrar que a falta de efetividade na proteção aos direitos humanos de primeira geração ou dimensão compromete a sua própria existência como instituto jurídico, como fundamento de uma sociedade.

Com efeito, uma sociedade que não é efetiva nas punições às violações do direito à vida, à integridade física e à liberdade parece paradoxal quando efetivamente faz valer os direitos do consumidor, do meio ambiente, da comunicação, etc.

II – História Jurídica da Tortura
Para Edward Peters, atos de barbárie praticados por alguém contra outra pessoa, por mais chocante e por mais revolta que possam causar, devem ser tratados como um crime com qualificadoras e agravantes (assédio moral, abuso sexual, atrocidade, torpeza, etc.). Tortura é uma atividade que tem uma História e está vinculada à atividade judicial, administrativa ou por outros órgãos do Estado. A Tortura tem um caráter público, tanto em suas formas primitivas quanto nas formas recentes.

Em seu livro “Tortura”, o autor nos demonstra _ baseado em fontes históricas como textos do poeta Hesíodo e oradores legais, a obra “Guerra do Peloponeso VIII”, de Tucídides, e “A Retórica”, de Aristóteles _ que desde a Grécia Antiga, ao tempo da vívida democracia da época de Péricles, num processo, poderiam ser usados como prova, as leis, as testemunhas, os costumes, a tortura e os juramentos. Os cidadãos livres não podiam ser torturados, bastando seus honrados depoimentos. Os escravos, os trabalhadores de profissões vergonhosas e os estrangeiros poderiam ser torturados para obter prova em processos civis ou penais. No entanto, nos casos de crime político, os cidadãos também poderiam ser torturados. No Direito Romano, o princípio da inviolabilidade do cidadão nascido livre era obedecido com rigor, assim como a proibição de torturar escravos para obter provas contra o seu senhor. E os advogados romanos questionavam de todas as formas a validade da prova obtida sob tortura: a capacidade de resistência de uns possibilitaria mentir; a fraqueza de outros possibilitaria prestar o depoimento desejado pelas autoridades; qual o motivo do pedido de tortura; quem esteve encarregado do procedimento, etc. Na Idade Média, com a formação do direito canônico universal, surgiu o processo inquisitório e a confissão passou a ser a “rainha das provas”. Através da confissão, a sociedade daquela época sentia poder superar as incertezas da falibilidade dos juízes e júris e dos depoimentos das testemunhas. A tortura passou a ser utilizada para obter a confissão. Deus haveria de fortalecer os justos para que resistissem à tortura.

Do século XIII até o final do século XVIII, a tortura fez parte dos procedimentos penais comuns da Igreja e da maioria das nações da Europa. Produziu-se uma farta jurisprudência sobre a tortura, a matéria passou a ser área de especialização de muitas gerações de juristas durante séculos. Durante os séculos XVI a XVIII, a tortura passou a ser muito atacada e, no final do século XVIII, o ataque foi bem-sucedido em todos os lugares, destacando-se a obra “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria. A tortura foi associada a uma época de superstição – a Idade Média – e sua abolição era necessária ao progresso. A tortura passou a ser vista como uma prática ultrapassada, um passado de irracionalidade. Precisamente nesse contexto histórico, os direitos humanos foram reconhecidos nas declarações americana e francesa.

Durou pouco. No final da I Guerra Mundial, a tortura retornou com objetivos diferentes e os excessos são cometidos em nome da humanidade e do progresso. Nos países desenvolvidos, o Estado Totalitário exige “cidadania total”, ou seja, submissão total de suas populações. Nos países subdesenvolvidos, a tortura é vista como reflexo de seu primitivismo. Países com forte ideologia justificam a tortura contra “os inimigos do povo, do Estado, do Partido, da Revolução” (Rússia, Itália, Espanha, III Reich). Durante o século XX e até o presente momento, nas ações militares, a busca por informações justifica a tortura em muitos países, a despeito das Convenções Internacionais. No Brasil, a tortura, tanto física quanto psicológica, as prisões arbitrárias e as execuções sumárias são praticadas com frequência por órgãos do Estado, e toleradas e estimuladas por órgão estatais e jurisdicionais.

III – Cidadãos Humanos
(…)”Um promotor de São Paulo punido por incitar a violência policial será responsável pela investigação dos PMs suspeitos de terem assassinado duas pessoas já rendidas na zona oeste da capital paulista. O caso mais polêmico envolvendo esse promotor, Rogério Leão Zagallo, ocorreu em junho de 2013, quando ele pediu, via rede social, para que PMs matassem os manifestantes, que protestavam no caminho de volta para a casa dele, em São Paulo.” Estou há duas horas tentando voltar para casa, mas tem um bando de bugios revoltados parando a Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém pode avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta, eu arquivo o inquérito policial…” (Folha de São Paulo, 16/10/2015)
Lamentavelmente, todos os dias, há anos, a mídia tradicional e os sites jurídicos trazem notícias de torturas praticadas por agentes do Estado, tanto nas polícias como no Ministério Público e na magistratura. É emblemático o caso de um magistrado de São Paulo, que confundiu um homem inocente com outro que supostamente havia furtado uma máquina de lavar de sua casa. Mandou que o homem fosse levado à delegacia, onde adentrou a cela e começou a espancar o detido com o objetivo de obter a confissão. A vítima, cuspindo sangue e com a roupa rasgada, tinha a cicatriz de uma cirurgia renal recente, onde o magistrado passou a concentrar os socos. Foi condenado a quatro meses e vinte dias de prisão, mas não chegou a cumprir a pena, pois já estava prescrita quando a sentença foi prolatada. O caso ocorreu em 1993 e o magistrado permaneceu no exercício das funções até completar setenta anos de idade, quando se aposentou (publicado em JusBrasil, 15/11/2011). Esses casos não são isolados. De norte a sul do país, denunciam-se abusos, arbitrariedades e crimes de tortura, praticados por magistrados, policiais, promotores de justiça.

Destacamos a tortura porque começa com a ameaça, a intimidação (tortura psicológica), segue-se a prisão arbitrária e os ataques à integridade física e, em alguns casos, a execução sumária. Destarte, somos adeptos da posição adotada por Edward Peters _ a tortura tem uma história e é uma atividade dos agentes estatais, utilizando o poder estatal para satisfazer os mais torpes instintos.

E parece que a magistratura divide-se entre os juízes coniventes com a tortura e aqueles que morrem no cumprimento do dever, assassinados por agentes do próprio sistema, contra os quais”ousaram”aplicar a lei. Entre as duas categorias, estão aqueles que silenciam pelo temor de represálias. É a explicação que se pode obter da análise de punição tão branda para o ato praticado pelo mencionado magistrado, que não foi afastado do cargo, não cumpriu a pena e aposentou-se ao setenta anos. Desnecessário fazer comparações com qualquer outro cidadão comum, cuja pena teria sido muito mais rigorosa, e estaria preso, talvez até hoje, aguardando o julgamento.

Impressiona que a magistratura, como instituição, não esteja vigilante para coibir e punir com rigor e, publicamente, repudiar atos dessa natureza.

Como bem salienta Edward Peters, há que” ponderar sobre a diferença entre as definições morais e sentimentais da tortura “. Sobejam, hodiernamente, nas redes sociais, sites jurídicos e blogs pessoais, declarações públicas de policiais, membros do Ministério Público e da magistratura, declarações públicas de escárnio à Constituição e aos direitos humanos. Não podem ser tratadas como excessos no direito de livre manifestação do pensamento. Qualquer declaração de menosprezo aos direitos humanos da parte de uma autoridade investida de prerrogativas de ordem pública já configura em si mesma uma tortura psicológica, uma intimidação e uma grave ofensa à dignidade humana.

IV – Conclusão
Desde a sua gênese, o reconhecimento dos direitos humanos teve como escopo estender a cidadania para todas as pessoas sem distinção de qualquer natureza. A meta permanente de tornar cada vez mais efetiva, no plano material, a igualdade jurídica, vem sendo atingida em relação a alguns direitos humanos como o meio ambiente saudável, por exemplo. Os direitos humanos de primeira dimensão _à vida, à integridade física e à liberdade _ são diariamente violados e agentes estatais escarnecem das garantias constitucionais.

A atividade estatal deve pautar-se pelo respeito rigoroso aos direitos humanos e efetivas punições aos agentes públicos infratores. Quando é necessário dizer o óbvio muitas vezes, é óbvio que o óbvio já deixou de existir.

Referências Bibliográficas

Constituição Federal e Lei n. 9455/97

PETERS, Edward,” Tortura “, Ed Ática, São Paulo, 1989

LEWANDOWSKI, Ricardo,” Atividade judicante tem de cumprir o dever de recato “, Conjur, 13/09/2015

NUCCI, Guilherme,” Por que há tantas prisões cautelares no Brasil? “. Conjur, 13/10/2015

STRECK, Lenio Luiz,” Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos “, Conjur, 28/07/2016

JusBrasil Notícias, 15/11/2011

texto de Rejane Guimarães Amarante, advogada, OABSP nº 73.651, disponível para download no site acadêmico EBAH, buscar pelo nome da autora no próprio site

Por Rejane Guimarães Amarante
advogada e escritora em São Paulo. Nascida em 15 de março de 1960 em Curitiba (PR). Graduada em Direito -USP em 1982.Fone (11) 96177-2231 bitterante@hotmail.com

Fonte: jurirejane.jusbrasil.com.br

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